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Tem tido sonhos estranhos na quarentena? Especialistas explicam o porquê

Nas últimas semanas, a maioria das pessoas sofreu mudanças bruscas na rotina e consumiu muitas notícias sobre o coronavírus. E a necessidade de entender o momento está se refletindo nos sonhos. Segundo a psiquiatra e neurocientista Natália Mota, do Laboratório do Sono do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), estamos vivendo um trauma coletivo, de forma que os sonhos refletem o esforço psíquico para se adaptar a uma nova realidade.

“Quando sofremos um trauma individual, o mundo lá fora, a rotina das outras pessoas, continua igual. Mas no caso da pandemia, que é o que estamos vivendo agora, o mundo externo está totalmente instável, então estamos coletivamente digerindo informações difíceis, sem paralelo com qualquer coisa que já tenhamos vivido”, explica Mota. “Quanto mais difícil digerir uma informação, mais sonhamos com ela”.

Para a neurociência, o sonho tem a função de simular, num ambiente seguro, situações que nos desafiam no mundo real e, assim, aumentar nossas chances de sobrevivência. “A espécie humana tem um enorme poder de adaptação e o sonho é muito importante para isso. Por exemplo, quando uma pessoa sofre um trauma, pode ter sonhos recorrentes com isso, pois o cérebro tenta recuperar informações sobre o que a deixou vulnerável e, de forma segura, treinar habilidades e estratégias para evitar que isso ocorra outra vez”, diz Mota.

Para a psicanálise, os sonhos são um “mundo subterrâneo” de nossos desejos e medos. “Nesses tempos de confinamento e incerteza, os sonhos são restaurativos, porque dão forma para angústia que estamos vivendo. Ajudam a elaborar a realidade”, diz o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), que está compilando, junto a cientistas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), relatos de profissionais das áreas da saúde e da educação durante a pandemia*.

O projeto foi inspirado em uma pesquisa do começo dos anos 1930, na Alemanha —pouco antes da Segunda Guerra Mundial, a jornalista Charlotte Beradt reuniu sonhos das pessoas nesse período. Nesses relatos, é possível identificar elementos que estariam presentes num futuro próximo, como os campos de concentração, a perseguição aos judeus. “Isso não é nenhuma mágica: acontece porque os sonhos são o raio-x de um futuro possível, construído a partir do presente”, diz Dunker. “Na nossa pesquisa, estamos vendo que as pessoas estão sonhando mais, lembrando mais dos sonhos. Muitas relatam que acordam com um sentimento de ter trabalhado muito durante o sonho —isso é o esforço de simbolização do real nesse momento”.

Acordar se sentindo cansado também é comum

Para Mota, o estado de cansaço, bem como sonhos muito realistas, podem ser um misto de maior disponibilidade para dormir, para presentar atenção nos sonhos e do aumento, com a situação de instabilidade no mundo, dos hormônios relacionados ao estresse, que nos mantêm em alerta. “É um estado misto de sono profundo com funções de quando estamos despertos, de forma que o cinema interno do sonho fica mais vívido”, explica.

A neurocientista está conduzindo uma pesquisa no Instituto do Cérebro que busca analisar matematicamente as mudanças no conteúdo dos sonhos. Mota está analisando, por meio de programas de computador, os relatos de sonhos em grupos de pessoas que já os relatavam para a pesquisa antes da pandemia, de forma que será possível verificar se de fato há mudanças nos padrões de sonhos e quais seriam.

Sentir medo, confusão mental, tristeza, ansiedade e ter dificuldade para entender a realidade é normal nesse momento, segundo Mota, pois estamos nos ajustando a uma nova realidade que é muito estressante. “Estamos coletivamente buscando essa adaptação e o processo do sonho faz parte disso. É um treino de realidade virtual personalizado dentro do banco de memórias da pessoa que está sonhando, cheio de significados importantes”, diz.

Dunker compara o sonho a escrever diários sobre a quarentena e organizar álbuns de fotos antigas, hábitos que muitas pessoas estão cultivando nesse período. “No sonho, parte do presente vai ao passado e depois se projeta o futuro. Voltamos ao nosso baú de lembranças, repleto de desejos pendentes do passado, imagens, cheiros, momentos bons, ruins, desejos de infância. E assim resolvemos pendências em forma de um cinema privado. É o trabalho do sono: acertar contas com nossos desejos e também com nossas angústias”.

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