Conheça a jovem que fez 66 cirurgias por doença que médicos não conseguem diagnosticar
Charlotte Evans tinha 12 anos quando teve o primeiro episódio de um problema de saúde não diagnosticado que faz com que partes de seu corpo fiquem inchadas, às vezes durante meses.
Hoje com 19 anos, ela já passou por 66 cirurgias para aliviar a pressão causada pelo inchaço. A jovem chegou ao ponto de quase ter a perna amputada
Ela, que mora no Reino Unido, também tem sofrido com as reações de desaprovação de estranhos que acham que as cicatrizes que carrega nos braços seriam de cortes autoinfligidos.
Abaixo, o relato de Charlotte à jornalista Johanna Carr, da BBC.
Os primeiros sintomas
Quando criança, eu era completamente saudável e adorava dançar. Eu dançava quase todos os dias e fazia teatro, mas logo fiquei doente.
Eu senti dores no quadril e notei um calombo. Fiquei preocupada. O inchaço se espalhou pela área do meu estômago, costas e pernas. Era enorme.
Passei três semanas internada, mas os médicos não sabiam o que tinha causado aquilo. Eles me disseram que não conseguiam encontrar nada de errado em meu organismo e asseguraram que essa situação não aconteceria novamente.
Alguns meses depois, aconteceu o mesmo com minha mão. Fui ao hospital, porque estava ficando muito dolorida. Quando meus dedos começaram a ficar frios, os médicos disseram que eu tinha síndrome compartimental. Essa condição normalmente afeta pessoas após uma lesão. Eles não sabiam o que tinha causado isso em mim.
A síndrome compartimental
A síndrome compartimental é causada pelo acúmulo de pressão em virtude de uma hemorragia interna ou inchaço em um tecido fibroso chamado fáscia.
Cada grupo de músculos dos braços e das pernas está envolto por esse tecido.
Essa pressão diminui o fluxo sanguíneo e impede que músculos e nervos recebam os suprimentos necessários.
Ela pode ser tratada no hospital, por meio de um procedimento cirúrgico chamado fasciotomia, em que é feita uma incisão cirúrgica para aliviar a pressão.
Foi então que fiz minha primeira cirurgia. Eles cortaram a fáscia muscular, deixaram a ferida aberta por alguns dias e depois fecharam.
Depois disso, foi tudo por água abaixo.
Um uma ocasião, cheguei a passar sete meses no hospital, sem sair. Minha mãe é muito incrível e esse tempo todo dormiu em uma cadeira.
Foi difícil para mim na pediatria, porque parecia que não faziam nada e começaram a me dizer que não havia nada comigo, embora os problemas de saúde continuassem.
Nessa fase, enfrentei dificuldades em me relacionar com pessoas da minha idade. E também era bastante imatura, porque não havia experimentado muito do que a maioria dos adolescentes vivem.
Foi muito difícil quando fui transferida para o atendimento a adultos, mas, no longo prazo, foi melhor, principalmente porque eles não têm medo de tentar coisas novas no tratamento.
A minha frequência no ensino médio ficou em torno de 40%, tive que fazer os exames de conclusão do ensino secundário no hospital.
Fiz a minha primeira prova 12 horas após a cirurgia, ainda ligada a uma bomba de infusão de morfina. Me pergunto se isso funcionou ao meu favor, porque eu não poderia ter ficado mais relaxada. Passei em todas as provas com boas notas.
‘Quase perdi minha perna’
Em março de 2019, tive um inchaço na perna. Eu estava em tratamento regular no hospital. Um grupo de médicos estava passando e um deles, que eu conhecia bem, se aproximou e me perguntou como eu estava. Eu mostrei minha perna a ele. Não havia pulsação em meu pé.
Os médicos acharam que era tarde demais. Minha perna estava preta, e eles diziam que ela teria de ser amputada. Assinei o termo de consentimento e fui sedada.
Quando despertei, acreditava que estaria sem a minha perna, mas ela estava comigo. Fiquei muito feliz. Disseram que se demorassem mais uma hora, a perna poderia ter sido amputada, mas não foi necessário.
‘As pessoas pensam que eu me corto’
A cada cirurgia, minhas cicatrizes ficaram mais evidentes. Muitas vezes, as pessoas pensam que eu mesma me cortei.
Recentemente, eu estava em um elevador do hospital e um homem de meia idade me disse achar vergonhoso e egoísta de minha parte que eu me autoimolasse enquanto pessoas sofriam e morriam por causa do coronavírus.
Essa foi uma situação extrema, mas não é a primeira vez em que sou xingada por isso. As pessoas da universidade evitavam falar comigo, porque pensavam que eu tinha problemas emocionais.
É surpreendente que hoje em dia todos parecem achar que as pessoas são tolerantes em relação às outras. Alguma realmente são — mas muitas, não.
Se isso acontece comigo, não posso nem imaginar com é com os que realmente se cortam. Não é a toa que seja difícil conversar sobre saúde mental.
Não odeio nenhuma das minhas cicatrizes. Fiz tatuagens de borboletas no braço direito, como forma de respeito pela minha história.
‘Este ano foi muito duro’
Tive oito episódios difíceis neste ano. Estou começando a ter mais complicações, as coisas não estão melhorando tanto como acontecia quando eu era mais nova.
Agora estou fazendo um tratamento que funciona na maior parte do tempo. Ainda tenho episódios dolorosos, mas menos que antes.
Os médicos ainda sabem pouco sobre os meus problemas.
Acho que procuraram em todo o mundo para ver se podem descobrir alguém como eu, mas ainda não encontraram.
Estão buscando outros tratamentos, mas é difícil quando não há ideia do que está errado.
Tento suportar esses episódios em casa mesmo, porque senão teria de passar a vida no hospital. Mas quando fico muito ruim, quando tenho problema no quadril e não consigo andar ou quando tenho de fazer cirurgia, acabo indo ao hospital.
Nas costas ou no quadril, as dores podem ser intensas e até inchar, mas não preciso de cirurgia. Porém, isso pode me afetar duramente por meses antes de melhorar.
Mesmo quando o inchaço fica menor, o sangue se solidifica e leva muito tempo para normalizar.
Aos poucos, percebi que existem muitas pessoas com doenças sem diagnósticos. É difícil, porque as coisas ficam escondidas e, às vezes, os médicos não acreditam em você.
Esse é o maior problema. Você sempre tem que enfrentar esses obstáculos sem ficar com raiva — porque senão começam a dizer que (o problema) deve ser relacionado ao estresse.
‘Não ser capaz de dançar me torturou por anos’
Uma coisa que me afeta é não poder dançar. Isso me torturou durante muitos anos.
O meu plano era me dedicar ao teatro musical. Estudei dança, teatro e canto para me preparar.
Estou começando a ter aulas de dança novamente, o que me deixa nervosa, porque me preocupo que minha condição me afete e que não consiga mais dançar.
Muitas vezes, só tenho um pequeno intervalo de tempo entre os inchaços e dores intensas, então uso esse espaço para fazer tudo o que posso, porque sei que talvez em duas semanas não consiga mais.
Espero que a minha condição melhore e que eu possa mantê-la sob controle.
Eu adoraria ser capaz de dançar o tempo todo e fazer isso muito bem, como no passado, mas não quero criar muitas expectativas.
Não sei se poderei fazer teatro musical. Mas, às vezes, você precisa ser melhor naquilo que está ao seu alcance, não naquilo que você planejou.