RELATO: Ex-Bruna Surfistinha, Raquel Pacheco revela ter sofrido abuso sexual do pai
Com 5 anos, ela ouviu da mãe que havia sido adotada. Por causa da dor da revelação, passou a comer escondido e virou alvo de risada das crianças do colégio, que debochavam do fato de ela ser gorda. Nascida em Sorocaba e criada em São Paulo, aos 7, foi abusada pelo pai adotivo.
Depois, passou a vida tentando vestir uma capa de herói nesse homem que nunca lhe deu amor. Como não conseguiu, decidiu chamar sua atenção de outra maneira e, aos 17, abandonou o conforto de uma vida de classe média alta, em São Paulo, entrou para o mundo da prostituição, e nunca mais voltou para casa.
Durante os três anos em que foi Bruna Surfistinha, garota de programa que ficou conhecida depois de criar um blog em que dava nota para o desempenho sexual de seu clientes, contabilizou 3 mil transas. Entre suas contradições, está o fato de nunca ter se entendido como símbolo sexual e escrever quatro livros com o mote – O Doce Veneno do Escorpião (2005), O que Aprendi com Bruna Surfistinha: Lições de uma Vida Nada Fácil (2006), Na Cama com Bruna Surfistinha: Receitas de Prazer e Sedução (2008) e 100 Dicas de Sedução de Bruna Surfistinha (2012), todos publicados pela Panda Books. Também ganhou um filme e uma série sobre sua vida – respectivamente: Bruna Surfistinha (2011), que traz Deborah Secco no papel central, e Me Chama de Bruna (2016-2020), estrelada pela talentosa Maria Bopp, cuja quarta temporada estreou recentemente na Globoplay.
Quinze anos depois de largar a prostituição, mora de aluguel em uma casa sem luxo na Vila Mascote, na Zona Sul da capital paulista, mas garante que está bem financeiramente. A eleição presidencial de 2018, quando se revoltou com a ascensão do então candidato Jair Bolsonaro, despertou seu interesse por política. Na última corrida eleitoral, ano passado, usou suas redes sociais para defender a vereadora eleita paulistana Érika Hilton, primeira mulher trans a ocupar o cargo, e a chapa Guilherme Boulos-Luiza Erundina, que concorreu à prefeitura de São Paulo, todos do PSOL.
Além da loja virtual, em que vende toda a sua linha de produtos eróticos, dá palestras motivacionais e workshops para mulheres que buscam transformar suas vidas sexuais – a maioria casada, com receio de ser traída pelo marido. Bissexual assumida, sonha em terminar o segundo grau, que abandonou dois meses antes de completar, formar-se psicóloga e ser mãe. Articulada como poucos, conversou com Marie Claire durante mais de três horas, por dois dias seguidos. Com o coração escancarado e sem vergonha de revelar suas vergonhas. Abram alas para Raquel Pacheco – e não, não a chame de Bruna.
Marie Claire Sua bio no Instagram diz: “Eu sou aquela que deu certo”. O que é dar certo para você?
Raquel Pacheco Essa frase surgiu durante uma sessão de terapia. Minha psicóloga perguntou: “Quem é a Bruna para você hoje?”. Falei, muito espontaneamente: “É aquela que deu certo”. Porque consegui sair da prostituição e não são todas que têm essa oportunidade. E tem aí o duplo sentido, em relação àquela minha frase que ficou famosa: “Hoje não vou dar, vou distribuir”.
MC Faz terapia desde quando?
RP Comecei criança, quando, com 5, 6 anos, fui diagnosticada com depressão. Aí dei uma pausa e voltei na adolescência, novamente deprimida. Depois parei de novo e retornei há quatro meses, online.
MC Você tem algum diagnóstico? Toma remédio?
RP Fui diagnosticada como borderline há três anos. Na última vez que fui ao psiquiatra, no ano passado, saí com uma receita de quatro remédios: para depressão, borderline, ansiedade e insônia. Só que comecei a me sentir muito mal por depender deles. Não que tenha preconceito, é mais por querer passar por cima dos problemas. E aí busquei terapias alternativas, meditação, constelação familiar, xamanismo.
MC Como são essas crises? Tem pensamentos suicidas?
RP Já passei dias na cama, sem tomar banho nem comer. Em momentos de desespero, tinha vontade de morrer. Aí pensava: “Como vai ser? Vou me jogar da ponte, vou encontrar uma arma?”. Mas, ao mesmo tempo, tenho sonhos. Sempre quis ser psicóloga e mãe. Quando eu conseguia respirar, era nisso que me segurava. Nisso e nos meus bichos [um cachorro e três gatas].
MC Você se casou com um ex-cliente e saiu da prostituição. Tinha medo de que ele voltasse a frequentar prostíbulos?
RP Quando a gente se conheceu, ele disse que eu era a primeira prostituta com quem ele tinha saído e eu acreditei. Mas, em vários momentos, tive medo de isso ser cíclico, de ele conhecer outra e me abandonar. Não aconteceu, nossa separação foi natural. Ele é dez anos mais velho e, quando fez 40, a diferença de idade pesou. Sentia que a gente não estava mais caminhando junto. Ele chegava tarde do escritório, ligava o videogame e ficava lá até a hora de deitar. E eu achava ótimo porque já não queria mais conviver com ele. Passamos o último ano inteiro do casamento sem fazer sexo.
MC O sexo com ele mudou depois que vocês casaram?
RP Quando ele foi fazer programa, a gente mais conversava do que fazia sexo. Depois de casados, a rotina nunca foi de fazer sexo todo dia. A gente foi morar junto em junho de 2005 e eu me prostituí até outubro daquele ano. Ele respeitou a minha decisão. Isso me trouxe um sentimento de gratidão muito grande. Por ele acreditar em mim, confiar que eu pararia. Na verdade, nunca enxerguei o João [Corrêa de Moraes, empresário] como marido, mas como uma figura paterna, o homem que me tirou da prostituição. Tanto é que ele sempre soube do meu sonho de ser mãe, mas nunca tocou no assunto. Talvez pelo fato de já ter filhas [de 1 ano e 3 anos, na ocasião do casamento]. No fim do relacionamento, ficamos um ano sem transar.
MC Como era sua relação com as crianças?
RP No começo, não muito boa por causa da ex dele, que tinha mágoa em relação a tudo que aconteceu, e medo de que, quando as meninas crescessem um pouquinho, soubessem que o pai a trocara por uma prostituta. Mas, mesmo ela fazendo de tudo para atrapalhar, tive muito convívio com as duas. A cada 15 dias, elas passavam o fim de semana com a gente. Eu sentava com elas pra desenhar, pintar… E acabei vivendo com elas um sentimento de mãe, de alguma maneira.
MC Como está essa vontade hoje? Está namorando? Pensa em congelar óvulos?
RP Queria muito ser mãe antes dos 40, estou com 36 anos. Estou noiva, mas estamos juntos só há cinco meses e acho que é cedo para ter um filho. Não pensei em congelar óvulos ainda, mas talvez seja legal, até porque quero ter dois filhos e não tenho muito tempo.
MC Você tem amigas da época em que se prostituía?
RP Sempre tive dificuldade de fazer amizade. Minha amiga mais próxima, a Gabi, escondia dos pais que era prostituta. E aí, quando comecei a aparecer na mídia, ela foi se distanciando. O estopim foi quando me convidaram para participar da Máquina da Verdade, programa que o Silvio Santos tinha na época, e pediram para levar três pessoas que fizessem parte da minha vida. Eu não tinha ninguém além dela, que se negou a aparecer do meu lado. Acabei chamando a minha cabeleireira e a minha manicure, que levou uma conhecida dela.
MC Como se sentiu com isso?
RP Em um vazio muito grande. Na época, trabalhei na terapia o fato de não confiar nas pessoas. Carrego esse vazio desde que descobri ser adotada e comecei a questionar o porquê de ter sido abandonada.
MC Como descobriu?
RP Eu tinha 5 anos. Minha mãe estava me arrumando para a escola e do nada falou: “Preciso te contar uma coisa. Você não nasceu da minha barriga, foi adotada”. Foi muito violento, lembro como se fosse ontem. Anos depois, aos 12 anos, esse assuntou voltou à tona e meu pai me disse: “Se um dia você quiser saber sua história, pode conversar com a gente. Sua mãe está muito mais próxima do que você imagina”. Mas, na época, não quis.
MC E hoje, tem vontade de conhecer seus pais biológicos?
RP Talvez não de sentar e conversar, mas gostaria de ver quem são meus pais, sim. Acho que todo mundo precisa conhecer a sua raiz. Sei de pessoas que têm relacionamentos maravilhosos com os pais adotivos e sentem o mesmo. Depois que meu pai morreu [de pneumonia, em 2012] e minha mãe passou a me considerar como morta, tenho que descobrir por outros meios.
MC Qual foi a última vez que você viu os seus pais?
RP No dia em que eu fugi de casa, aos 17 anos. Meu pai estava dormindo, roncava, e eu fiquei na porta do quarto conversando com ele mentalmente. Pensava: “Quando o senhor acordar, não vou estar mais aqui”. Minha mãe foi na hora em que saí. Eu sempre saía pela cozinha, e a pia era na frente da porta. Ela estava ali de costas, daí falei: “Tchau, mãe. Estou indo para a escola”. Ela nem se virou, só respondeu um tchau seco [chora]. É muito difícil lembrar disso, porque os dois deram as costas para mim, em vários momentos em que eu precisei deles…
MC O que diria a seu pai se o encontrasse novamente?
RP Acho que pediria perdão pela minha escolha, por não ter conseguido mais viver ali. Minha fuga aconteceu de maneira muito brusca. Por mais que não tivessem tanto afeto por mim, eles sentiram. Tanto é que, quando eu fui ao Poupatempo pra tirar outra via do meu RG, um ano depois de sair de casa, eu constava como desaparecida. O fato de o meu pai ter tido esse cuidado é sinal de que se preocupou, procurou por mim.
MC Você fala em perdão. Sente-se culpada ou arrependida?
RP Sinto culpa porque, querendo ou não, meu pai investiu muito em mim. Em escola, cursos de inglês, de informática… Me deu uma vida muito confortável, e eu frustrei as expectativas dele. Em um dos meus ciclos depressivos, veio um arrependimento em relação ao que eu tinha feito da minha vida. Porque fiquei casada durante dez anos e acabei me vendo no mundo sozinha novamente. Nessa época, me perguntava muito: “E se eu não tivesse saído de casa, me prostituído, será que minha vida seria outra?”. Mas esses questionamentos logo passaram.
MC Você foi abusada na infância?
RP Sim. Eu tinha uns 7 anos e acordei com o meu pai passando a mão no meu corpo. Me assustei, mas não tinha noção do que estava acontecendo e aquilo nunca mais se repetiu. Mas só entendi e elaborei isso muito recentemente. Em uma constelação familiar, passei a suspeitar que minha mãe biológica engravidou de um estupro e confirmei isso no terreiro [de umbanda] onde trabalho. Numa dessas práticas de constelação, minha mãe adotiva não conseguia olhar para a minha mãe biológica. Parei por causa da pandemia, mas entendi, com isso, que meu pai adotivo pode ser meu pai biológico.
MC Como foi isso?
RP Na constelação familiar, minha mãe biológica não conseguia ficar frente a frente com o meu pai. Ele chorava e também não conseguia olhar para a minha mãe, mas com um sentimento diferente. Ele sentia culpa e ela, mágoa. Daí a consteladora interpretou isso como se ela tivesse sido estuprada pelo meu pai. Depois, conversei com um guia do meu terreiro e ele sugeriu que fui fruto de um abuso e que a minha mãe tentou me abortar, não conseguiu e quase morreu. Minha adoção eu ainda não consegui decifrar. Porque não existe nenhum documento de adoção, e sei que isso é algo muito burocrático. Meus pais me contaram apenas que minha mãe adotiva queria ter mais um filho, não podia mais engravidar por um problema uterino e me pegou para criar.
MC Acha que sua mãe é alguém da sua família adotiva?
RP Acho sim. Pode ser uma tia materna, alguma parente próxima. Hoje percebo que, além de minha mãe adotiva não ter voz e ter se anulado, ela guardava muita coisa. Quando fugi, talvez tenha sido um alívio, porque mais uma pessoa dessa teia foi embora da vida dela. Pode ser esse o motivo de ela não me aceitar até hoje.
MC Nunca tentou uma reaproximação com ela? Mesmo que apenas para conhecer a sua história?
RP Duas vezes. Em agosto de 2012, quando um advogado entrou em contato para avisar sobre a morte do meu pai e resolver questões judiciais. Naquele momento de dor, achei que seria mais fácil. Mas ela deixou claro que só falaria comigo via advogados. Em 2018, fui até seu prédio, mas ela não me recebeu. Depois, me atendeu ao telefone e disse que não me considerava mais sua filha.
MC Você tinha uma relação afetuosa com seu pai?
RP Não tive um pai herói, como acredito que a maioria das mulheres tem vontade de ter. E me culpava por isso porque sempre quis conquistar esse homem, sem entender que ele era abusador. Sentia que precisava dar a ele todo o amor que eu conseguisse.
MC Muitas vezes a prostituição não é uma escolha, é uma falta de opção. No seu caso, foi. Acha que o fato de ter escolhido essa profissão tem a ver com esse homem que você passou a vida tentando conquistar e não conseguiu?
RP Muito. Porque, quando percebi que não conseguiria conquistar o amor do meu pai, quis incomodá-lo. Ele sempre foi muito preconceituoso. Lembro de a gente assistindo à primeira edição do Big Brother e de ele dizendo: “Mulher que aparece na televisão de biquíni, tomando sol na piscina, é puta”. Se via alguém de short na rua, era puta.