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ENTENDA: Como é o trabalho de uma ‘doula da morte’ com doentes terminais

Sou enfermeira de formação e trabalho na área de enfermagem desde 2004, quando comecei como técnica. Durante minha carreira, passei por diversos locais, até sargento do Exército eu fui, e sempre atuei em emergências e UTIs, onde os desfechos — em especial a morte — geralmente não aconteciam de uma maneira que eu considerasse digna. Por exemplo: salvar a vida de um paciente que deveria estar em cuidados paliativos a qualquer preço, com procedimentos invasivos que não trazem qualidade de vida.

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Em minha avaliação, esse seria um momento de chamar a família, trabalhar questões emocionais e pessoais, cuidar do ser humano usando recursos para um fim mais acolhedor. Mas a gente (profissional da saúde) acha que é dono de todas as vontades, a gente não pergunta para o paciente se a vontade dele naquele momento é ser entubado, ser ressuscitado, receber procedimentos invasivos. Isso não acontecia e me incomodava muito. Então passei a me questionar se era isso mesmo que eu queria fazer da vida e cheguei a pensar em desistir da profissão.

Mas aí pensei: “O que eu sei fazer de melhor?” — e percebi que cuidar do outro era do que eu mais gostava. Decidi me especializar em gerontologia (estudo do envelhecimento) e cuidado de idosos. Saí do ambiente hospitalar e resolvi empreender oferecendo atendimento de enfermagem domiciliar para idosos e cuidados paliativos em domicílio. Atendendo na casa deles, acredito que posso agir da forma mais adequada para esses pacientes, com foco na humanização do atendimento.

Com o tempo, meus pacientes começaram a falar comigo sobre a morte, sobre a finitude da vida, sobre seus anseios, medos e vontades. Conscientes de que estavam no fim da vida, passaram a tocar nesse assunto e a expor suas questões. Isso se mostrou muito desafiador, porque nossa cultura não tem o hábito de falar sobre a morte. Parece que é algo errado, feio. Se você fala sobre morte dentro de um hospital, as pessoas olham torto, como se ninguém morresse ali. E foi por causa de meus pacientes, que me questionavam sobre a morte deles, que comecei a me informar sobre o assunto e descobri que existia o termo “doula da morte”.

Fui me especializar em cuidados paliativos e passei a trazer o assunto “morte” para minha equipe. Muitas de nós trabalhavam com a questão da finitude, mas de uma forma muito tímida. Em dezembro de 2018 surgiu a ideia de organizar a primeira roda de conversas para falar sobre a morte. Fiquei surpresa com a procura, umas 40 pessoas participaram. Havia gente que trabalhava em cemitério, cuidadores, familiares, profissionais da saúde. Foi muito legal. Depois disso, resolvemos criar o primeiro curso de doulas da morte do Brasil, e mais de 60 pessoas se inscreveram, mostrando que o tema é relevante, apesar de pouco falado.

“EM SEUS ÚLTIMOS INSTANTES, ESSE SENHOR CHAMOU OS FILHOS E A ESPOSA PARA ESTAREM AO LADO DELE, PASSOU ALGUMAS ORIENTAÇÕES E ‘ORDENS’ SOBRE COMO GOSTARIA QUE A VIDA SEGUISSE EM SUA AUSÊNCIA E, POR FIM, PEDIU: ‘AGORA ME DEIXEM MORRER EM PAZ’”

O termo “doula” geralmente é associado ao nascimento, quando uma profissional acompanha a gestante durante toda a gravidez e no momento do parto. Mas o processo da morte é muito antagônico ao nascer e também precisa de um acompanhamento — e é esse o papel da doula da morte. Acompanho pacientes no fim da vida e trago à tona questões muito pessoais, voltadas a suas vontades. Atuo também com os familiares, especialmente agora com a pandemia do coronavírus, quando muitas pessoas perderam seus entes sem conseguir sequer se despedir, velar o corpo. Passei a organizar memoriais e homenagens on-line para ressignificar a dor dessas famílias.

Em 2016, uma experiência que me marcou muito foi a doulagem de um paciente oncológico de 74 anos, extremamente consciente da doença que ele tinha (câncer de pulmão). Ele decidiu que não queria receber nenhum tratamento e queria deixar a vida seguir seu curso natural. Era um senhor muito lúcido, ativo, culto, que gostava muito de ler e de ouvir música clássica. Fui preparando a família, os filhos, a esposa, porque ainda havia muita resistência — fiz uma doulagem voltada à educação em relação à morte. Não é fácil para um familiar bancar a vontade de uma pessoa de querer morrer.

Esse senhor viveu seus dias intensamente e sem tratamento, apenas recebendo os cuidados paliativos, até que chegou um momento em que ele já estava bem ruim e a sua vontade era morrer em casa. Um dos filhos me chamou, disse que respeitava a vontade do pai, mas que não conseguiria deixar o pai morrer em casa. Aí convenci o paciente a ir para o hospital para atender a uma vontade do filho, mas havia um novo desafio: o de estar no hospital sem receber as intervenções que ele não queria.

O paciente não se alimentava mais e não aceitou uma sonda para ser alimentado, apenas recebia medicação para controle da dor e cuidados paliativos de uma equipe multidisciplinar. Ele estava no que chamamos de processo ativo de morte — aquele momento em que o paciente fica um período recluso, num mergulho interno, e de repente vive uma espécie de euforia. Faz seu último desejo, pede uma Coca-Cola, um chocolate, pede para falar com algum parente com quem estava brigado, tenta resolver algumas pendências. Em seus últimos instantes, esse senhor chamou os filhos e a esposa para estarem ao lado dele, passou algumas orientações e “ordens” sobre como gostaria que a vida seguisse em sua ausência e, por fim, pediu: “Agora me deixem morrer em paz”. Foi uma das mortes mais bonitas e conscientes que acompanhei.

Outra situação foi aquela em que não atuei diretamente, mas ajudei a filha a doular a morte da mãe dentro de um hospital. Tivemos muitas conversas sobre morte, e essa filha percebeu exatamente quando a mãe estava partindo. Entreguei a ela um kit que incluía óleos de massagem, velas aromáticas, incensos e uma playlist com as músicas preferidas da paciente. A filha colocou as músicas e se conectou com a mãe, que não conseguia se comunicar mais, por meio do toque na pele. Após a morte, mesmo dentro do hospital, a filha conseguiu fazer a limpeza do corpo da mãe e pôde vesti-la para o enterro. Foi tão genuíno e lindo que a funerária a deixou assumir essa função.

Houve um paciente que fez as pazes com o filho no leito de morte, acompanhamos os últimos momentos de uma doula da morte que descobriu uma cirrose hepática fulminante e hoje em dia temos feito muitas doulagens para atender pessoas que perderam algum familiar para a Covid-19. Sempre choro, pois o sentido de tudo que eu faço é este: me envolver com as famílias e ajudá-las a passar pelo luto. As pessoas precisam entender que falar de morte é falar sobre a vida, repensar e redimensionar como será a vida na ausência de alguém.

O mais difícil para mim hoje é que a Tatiana de alguns meses atrás não existe mais, porque me tornei mãe há dois meses e tudo mudou. A Tatiana de antes não tinha medo de nada, mas agora tem um bebê totalmente dependente, e isso pesa um pouco. O medo não é da morte exatamente, mas de morrer. Morreu a mulher para nascer a mãe. Um encerramento de ciclo, assim como a morte.

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