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RELATO: Jovem que acreditou ser trans se arrepende e faz a destransição

Isabela Aroca Silva, de 33 anos, é uma mulher que não performa a feminilidade e sempre teve uma relação não muito saudável com o próprio corpo, especialmente com os seios, o que pode ser entendido por muitos como uma disforia de gênero. Inclusive, foi dessa forma compreendido por ela mesma.

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Em um relato pessoal escrito com exclusividade para a GQ Brasil, em formato de linha do tempo, Isabela nos conta como deixou de ser ela para virar Bruno, um homem trans, até a (re)descoberta da própria identidade e voltar a ser Isabela. Uma jornada de autoconhecimento que passa pela hormonização (o uso de testosterona), destransição, sequelas, e arrependimento.

“O ano era 2013, eu tinha 26 anos, foi quando tive o primeiro contato com a Teoria Queer, através da leitura de um das obras do filósofo Michel Foucault, dito como o influenciador principal da criação da mesma. O texto era muito persuasivo, tentador, eu diria. Na verdade, a Teoria Queer é, em si, bastante sedutora para pessoas com disforia, como no meu caso, pois, de certa forma, ela “acolhe” aqueles que estão em busca de respostas para perguntas que, às vezes, não sabem nem colocar em palavras. Após essa introdução à Teoria Queer, comecei a me identificar como um homem trans e a pedir que me chamassem de Bruno.

‘Dentro deste meio [político], o reconhecimento foi quase que instantâneo, ninguém no partido me via como mulher, eu era Bruno, era um homem trans e pronto. Já fora deste círculo, a situação era diferente.’

Não fiz a hormonização logo de cara, foram quase dois anos sem me ver mais como Isabela, mas, também, sem qualquer interferência no meu corpo. Nesta época, eu era muito ligada à política, inclusive filiada a um partido de esquerda. Dentro deste meio, o reconhecimento foi quase que instantâneo, ninguém no partido me via como mulher, eu era Bruno, era um homem trans e pronto. Já fora deste círculo, a situação era diferente. As pessoas não entendiam, para muitos, eu era, ainda, Isabela.

Meu interesse por estudar, conhecer e entender mais o comportamento humano, principalmente sobre questões relacionadas às causas LGBTQIA+, sempre existiram e, assim como cheguei na Teoria Queer anos antes, em 2015, conheci o Feminismo Radical e aprendi sobre o movimento que reivindica a abolição de gênero.

‘Entendi que a feminilidade não é inerente à mulher.’

No Feminismo Radical compreendi que não deixava de ser mulher por não performar a feminilidade, muito menos era um homem por causa disso. Entendi que a feminilidade não é inerente à mulher. Com essa consciência, houve um ponto de virada e comecei a me reconhecer como uma mulher novamente. Uma mulher lésbica butch, ou caminhão, como muitos já ouviram falar, que nada mais é que: uma mulher homossexual desfeminilizada.

De fato, essa “descoberta” foi um alívio. Não era mais Bruno, voltei a ser Isabela. Todavia, independente do nome que eu usava ou como identificava meu gênero, a disforia com o meu corpo, especificamente com meu seios, não deixou de existir. Não me sentia bem com ele e isso também afetava a minha vida afetiva. Alguns anos se passaram e, em janeiro de 2019, vi a hormonização como a saída para resolver essa questão.

‘Pode parecer exagero, mas posso jurar que senti meu útero atrofiar.’

Ninguém nunca falou comigo sobre os efeitos colaterais da hormonização, sempre só escutei coisas positivas vi fotos de pessoas hormonizadas e felizes nas redes sociais. Eu acreditei nisso. Eu queria ser uma dessas pessoas. Porém, ainda no primeiro anos de injeções de testosterona, senti dores tão fortes que, inclusive, chegaram a me impossibilitar de sair da cama.

Pode parecer exagero, mas posso jurar que senti meu útero atrofiar. Havia dias que a região do meu quadril latejava e queimava de tanta dor, era insuportável. Conhecia outras pessoas que estavam passando pelo mesmo procedimento que eu à época, perguntei sobre as dores, mas todas me disseram que era normal – normal? É normal sentir tanta dor ao ponto de não conseguir andar? -, então, continuei o tratamento e logo parei de menstruar.

Paralelo a isso, eu passava por outros problemas na vida, relacionados ao meu antigo casamento, então decidi procurar ajuda psicológica. Em alguns meses de acompanhamento, a terapeuta identificou o que me acometia, o mesmo que em muitas outras mulheres: baixa autoestima, seguida de abundante insegurança. Tratamos isso e consegui resolver parte dos meus problemas. Mas ainda havia a questão do hormônio, que, no fim, não estava ajudando com relação à minha disforia.

‘Toda menstruação é uma vitória.’

Na metade deste ano, 2020, encontrei e comecei a acompanhar o podcast Górgona que, em uma temporada (4 episódios), os criadores debateram a Teoria Queer. Sim, eu já havia lido – bastante, inclusive – sobre o assunto, mas como disse anteriormente, meu interesse é sempre continuar estudando. Ouvir a dissertação sobre o tema me mostrou um outro ponto de vista e foi esse o divisor de águas para mim. Naquele mesmo dia, decidi parar com a testosterona e coloquei um fim à minha hormonização, após 1 ano e meio de tratamento. Mas, as coisas não são tão simples assim.

Ainda hoje, 3 meses desde de que interrompi a hormonização, as dores continuam e já até cheguei a pensar em voltar atrás e injetar testosterona no meu corpo novamente. Resisto, afinal, ele está apenas respondendo ao que aconteceu durante meses, se readaptando. Antes da hormonização, meu ciclo menstrual era regular, eu menstruava por 3 dias, minha TPM era bem leve e não sentia cólicas. Hoje, é diferente, menstruo 7 dias, tenho uma TPM pesada e muita cólica, muita mesmo.

As mudanças físicas com que preciso lidar agora me fazem acreditar que o que fiz é irreversível, não julgo que meu corpo um dia volte a ser o que era. Sinto que ele e a minha mente, a cada mês que passa, a cada ciclo, estão se reconectando, mas nada será como antes da testosterona. Ainda assim, toda menstruação é uma vitória. É como se eu estivesse me libertando de algo muito ruim, algo que me fez muito mal, que causou e ainda causa bastante dor. Está sendo uma redescoberta, mas também mais que isso: um renascimento.”

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