Geral

RELATO: Transicionei aos 50 anos após infarto e continuei casada com minha mulher

“Meu nome é Letícia Lanz, sou psicanalista, tenho 70 anos e passei pela transição de gênero aos 50, após sofrer um infarto. Digo que eu o produzi. Aguentei muita pressão por viver uma vida sendo uma pessoa que eu não era. Até hoje eu visualizo a luz azulada do teto da UTI. Foi ali que eu disse: ‘Acabou, bicho. Se ficar viva, é outra história’. Por que se fosse para sair dali como Geraldo, era melhor nem sair.

Sabe quando todas as áreas da sua vida desabam de uma vez só? Saúde, dinheiro, família, projetos de vida? Era isso que estava vivendo. Não dava nem para juntar os caquinhos, tinha que fazer tudo de novo. Em algumas noites eu dormia e pensava: ‘Não quero acordar amanhã’.

Conto minha história no livro ‘A construção de mim mesma’, recém-lançado pela editora Objetiva. Neguei por muito tempo o convite para escrevê-lo. Quando vi onde teria que mexer, as lembranças que teria que rememorar e as reflexões a se fazer, fui desanimando.

Em geral, as pessoas têm muito pouco respeito pela nossa história. Elas querem, de alguma maneira, padronizar as pessoas LGBT, e infelizmente não é assim. Eu, por exemplo, sou uma mulher trans e lésbica, casada com a mesma mulher há 45 anos. Há 20, mesmo dentro do movimento, era criticada: ‘Como pode transicionar e continuar fazendo sexo com mulheres?’.

‘Depois de me deparar com a morte, decidi que não teria mais uma vida dupla’

A transição foi a concretização de uma vida paralela que já vinha existindo. Eu me montava para sair, participava do BCC, Brazilian Crossdresser Club [grupo de pessoas que se vestiam com roupas do gênero oposto], do qual a Laerte, minha amiga, também fez parte.

Quando cheguei ao hospital, já tinha feito terapia hormonal, tinha seios, meus filhos sabiam, minha mulher sabia. Mas ainda vivia uma vida dupla. Para muita gente, ainda era o Geraldo. Depois de estar de frente com a morte, decidi que seria uma só.

Levei tempo para me aceitar. A percepção que me acompanhava era que eu faria um favor enorme ao mundo não sendo quem eu sou. Desde a escola, era hostilizada e não entendia o porquê. Não agredia nem maltratava ninguém.

Fiz anos de análise para entender que isso acontecia porque eu era diferente. É o que Sigmund Freud [conhecido como pai da psicanálise] chama a ‘aversão à diferença’, que é criada na criança nos primeiros anos de vida, e de certa forma é uma proteção para ela, continuando no adulto. No Brasil, ou você era travesti de rua, que vinha das classes mais baixas da população, se prostituindo, ou era transsexual, a própria doente.

Eu vivia com medo de descobrirem que me sentia uma mulher. E isso foi muito cruel. Até eu compreender que não era doida, que não estava cometendo crime, que não era de fato um ataque moral contra ninguém, demorou. Até então era criminosa, delinquente, doente, possuidora de uma doença. Na verdade, várias doenças.

Uma devassa. ‘Ao me tornar Letícia, não tinha mais trabalho. Perdi tudo’

Tive de enfrentar a transição sendo uma consultora de recursos humanos muito respeitada. Fazia trabalhos para empresas e organizações públicas e privadas, no Brasil e no exterior. Tive o cuidado de não deixar nenhum projeto em aberto. Já antevia o que iria acontecer. Ao me tornar Letícia, foi como se eu tivesse desaparecido. Chegava a cruzar com pessoas com quem já tinha trabalhado, por exemplo, e nem olhavam para mim, como se eu tivesse desenvolvido uma lepra social. Lembrando que minha cara não mudou, não fiz cirurgia, e meus cabelos, brancos desde os 30 anos, continuavam os mesmos

De profissional reconhecida, passei a não receber mais nenhuma nova proposta de trabalho. Perdi tudo. Tinha uma boa condição financeira, uma conta cheia de zeros. Depois, só ficaram os zeros. Me redescobri em uma nova carreira, como psicanalista. É curioso que as pessoas me procurem hoje para serem atendidas e não preocupadas se sou trans, mas sim, em ter um bom atendimento. Isso não tem preço.

‘Continuo sendo o marido, o pai e o avô’

O que eu mais queria nessa história toda era preservar a família que eu montei. Mas meu casamento foi um dos pontos em que tudo desabou.

Eu percebi que eu tinha de me colocar para as pessoas, que não dava para manter o que era só dentro de mim. Mas pensei: ‘Não posso envolver essas pessoas, eu gosto demais delas para expô-las a uma situação que vai ser muito barra pesada’. E não era nem pela situação em si, mas como o mundo as trataria. Um sábado de manhã, entre 2002 e 2004, não me lembro direito o ano, resolvi sair de casa sem falar nada. Fui para um hotel. Angela, minha mulher, me ligava, eu não atendia. Estava com uma febre terrível.

Combinei com Angela que a encontraria em um posto de gasolina. Ela perguntou: ‘O que está acontecendo, tem outra?’. Eu respondi que sim, tinha outra, e ela me questionou quem era. Disse: ‘Eu’. Hoje a gente ri disso. Eu só consegui dizer para ela que gostava de me vestir de mulher. Ela falou para gente ir embora para casa, que se fosse só aquilo, era uma bobagem, não era nada. Mas eu sabia que não era só isso.

Quando a Letícia começou a aparecer no lugar do Geraldo, houve conflitos muito graves entre mim e minha mulher. Com o tempo, começamos a entender que vinha das outras pessoas, não era nosso. Nos perguntavam coisas como: ‘Vocês dormem na mesma cama?’, ‘E o sexo?’, ‘Vocês vão continuar juntos?’

Estamos juntas até hoje e sem perspectiva de separação. A essa altura, nossa relação é muito visceral. Uma já lê o pensamento da outra. Mas foi muito f***. Em relação à família, nunca tive problemas com os papéis que sempre assumi. Sou pai, marido, avô. Minha filha mora ao lado da minha casa. Se vou almoçar na casa dela toda produzidinha, não é uma questão. Para meus filhos e meus netos não é mais uma questão.

Um dia, fui ao supermercado com um dos meus netos, de 12 anos. Ele pegou um chocolate no caixa e disse: ‘Vovô, compra para mim?’. A funcionária, com seu terrorismo de gênero, falou: ‘Não é vovô, é vovó’. E ele virou para ela: ‘É vovô. A vovó está em casa’. Continuei em silêncio. Deixei para ela resolver esse enigma.

‘Foram as mulheres que me levantaram, não o movimento trans’

maginava que o gueto [movimento LGBT] fosse dar mais apoio, mas não deu. Mesmo dentro dos grupos, há um dispositivo binário de gênero e de orientação sexual. O próprio gueto fala sobre estar no corpo errado. Não, estamos na sociedade errada. Fui massacrada por transicionar e continuar com uma mulher.

Há hipocrisia na medida que defendem a diversidade e, na prática, não a deixam acontecer, não dão cobertura. Já chegaram a me dizer que não poderia representar a mulher trans porque nunca tinha ‘feito pista’, sinônimo para se prostituir. Esse tipo de embate foi terrível, mas matei no peito a maioria. Com o tempo, fui sendo aceita, eu fui a primeira intelectual dentro do movimento. Já tinha uma visão clara de gênero, estudava essa questão. Sofri muito por abrir uma porta. Fui a primeira trans a fazer mestrado no Paraná, não foi fácil, não.

Em 2020, fui a primeira candidata trans à prefeitura de Curitiba. Minha campanha focava na economia do cuidado, que é feminina por definição, e contra a do mercado. Tive de enfrentar até meu partido porque estava falando de luta de classes de outra maneira [Letícia concorreu pelo PSOL].

‘Sem o feminismo, eu estaria até hoje no armário’

O feminismo e a teoria feminista me ajudaram muito. Sem isso, estaria no armário. Tenho grande esperança nas mulheres. O movimento de libertação feminina foi o mais bem-sucedido na história da humanidade. Imagina que até a Constituição de 1924 a mulher era propriedade do homem. Imagina sair dessa condição e ocupar os postos que ocupa hoje? E isso sem dar um tiro. Se fosse o homem, com o belicismo no qual foi criado, pra chegar onde elas chegaram teria acabado com o planeta umas quatro vezes.

Ao longo da minha vida, as mulheres me respeitaram muito mais do que os homens. A capacidade de lidar com a diferença é muito maior. Fui um patinho feio que achava que encontraria seu grupo no movimento trans, mas não, foi entre mulheres. É o grupo com o qual me identifico, sempre me aceitou, sempre me recebeu. Foram elas que me levantaram.

Não temos um só feminismo, são vários. Mas o que está na base do movimento com potência seria essa capacidade de se solidarizar com a diferença. Na mitologia grega há um personagem chamado Tirésias que viveu metade da vida como homem e uma parte como mulher. Perguntam para ele qual foi melhor, ele diz que a segunda vivência. Eu tenho experiências boas dos dois lados. Mas a visão feminina da vida é muito mais saudável.

Letícia Lanz, 70 anos, passou pela transição de gênero aos 50, continua casada com a mesma mulher e hoje é escritora e psicanalista em Curitiba (PR).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo