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Quando os gigantes crescem demais

A história das finanças internacionais confunde-se com a história das crises financeiras. Periodicamente, os excessos cometidos por bancos ou investidores ávidos por lucros (em parceria com consumidores ou governos financeiramente irresponsáveis) provocam solavancos nos mercados. Foi assim com a crise da dívida dos países da América Latina nos anos 1970 e 1980. Foi assim com a crise do México que explodiu no início de 1995. E com a do subprime, em 2008.

Vale a pena recordar. Na crise da dívida dos anos 1980, Nicholas Brady, então secretário do Tesouro americano, estruturou um sistema engenhoso para salvar os países endividados, no que ficaria conhecido como “Plano Brady”. Os países endividados comprariam títulos do Tesouro americano – que eram garantidos – de longo prazo e que não pagariam juros. Devido a essas condições, os títulos poderiam ser comprados por uma fração de seu valor de face, e seriam usados para garantir títulos emitidos pelos devedores. Os países latino-americanos, Brasil entre eles, lançaram os “bônus Brady” que foram negociados durante vários anos e abriram caminho para a popularização dos títulos de dívida de países emergentes, até hoje muito negociados.

Alguns anos depois, em 1995, foi a vez do México quebrar. O socorro veio de fundos públicos americanos. Não foi caridade, foi praticidade. O então presidente americano Bill Clinton estava tentando colocar em pé uma zona de livre comércio na América do Norte, e isso seria impossível se um dos três parceiros quebrasse. Mais uma vez, quem pagou a conta foi o contribuinte americano. No entanto, os bilhões de dólares dispendidos eram muito dinheiro na época, mas não chegaram a afetar as contas públicas.

A escrita valeu até chegarmos em 2008, quando a crise do subprime fez os problemas anteriores parecerem briga por diferença no troco. A quebra do banco de investimentos Lehman Brothers deixou claro que a hiperconectada rede de compromissos financeiros, empréstimos colateralizados e fundos de hedge era gigantesca, complexa, mal fiscalizada e frágil. E a expressão “risco sistêmico” passou a tirar o sono dos profissionais do mercado e dos responsáveis pelas agências reguladoras. A solução, a única possível na ocasião, foi envolver o Tesouro americano para valer. Muito a contragosto, Washington costurou um programa semelhante ao Proer brasileiro de 1996, denominado Troubled Asset Relief Program (Tarp), que comprou ativos problemáticos dos bancos e injetou, na estimativa mais conservadora, 1,5 trilhão de dólares na economia.

A quem apelar?
O arcabouço político que salvou os bancos em 2008 foi aplicado para a economia como um todo em 2020, quando a pandemia levou à suspensão das atividades econômicas e ameaçou a economia global com a maior recessão em quase um século. Para impedir a quebradeira, o governo americano, desta vez servindo-se do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, passou a intervir diretamente na economia. Além de distribuir pacotes de ajuda no melhor estilo keynesiano, o governo usou a possibilidade teoricamente infinita de alavancagem do Fed para ampliar a liquidez por meio da compra de títulos públicos, hipotecários e também dívida privada.

Os números do Fed mostram o tamanho do pacote. No início de 2008, antes que o Tarp entrasse em vigor, o total de ativos do banco central americano era de 922 bilhões de dólares. No fim daquele ano, essa cifra havia quase triplicado, para 2,24 trilhões de dólares.

Os números não foram modestos em subir. Em 2014, o total contabilizado nos livros do Federal Reserve era de 4,5 trilhões de dólares, valor que permaneceu mais ou menos estável nos anos seguintes e chegou a recuar um pouco para 3,9 trilhões no fim de 2019. Aí veio a pandemia. E as declarações de Jerome Powell, presidente do Fed, quando o atual programa foi lançado, foram no sentido de que a capacidade de expansão do balanço do banco por ele presidido era “infinita”. Será?

Mesmo o céu tem limites
O balanço do Fed encerrou 2020 com 7,5 trilhões de dólares, e cresceu mais um trilhão até o início de outubro. Só com a divulgação das Minutas da reunião de setembro do Federal Open Market Committee (Fomc), o Copom americano, o Fed deixou claro que o processo de ampliar seu balanço por meio da compra de títulos públicos, hipotecários e créditos das empresas será desacelerado, até parar totalmente em meados de 2022. Nesse meio tempo, porém, o avanço dos números colocou em xeque a capacidade de o Fed continuar socorrendo a economia.

Em todas as crises desde os anos 1980 procurou-se a figura do “emprestador de última instância”. Em inglês fica mais elegante: “lender of last resort”. Aquela instituição ou governo que, no fim das contas, vai avalizar os planos de recuperação e garantir que a vida continue mais ou menos como era antes. Até antes da pandemia não havia ninguém minimamente sensato que duvidasse da eficácia da atuação do Fed. No entanto, a alta sistemática dos índices de inflação americanos e o crescimento lento – mas constante – da demanda por prêmios nos títulos de longo prazo do Tesouro americano mostra que o endividamento pesado da autoridade monetária começou a incomodar os investidores. Até agora, a inflação americana esteve bem-comportada, apesar de muito acima das metas estabelecidas. No entanto, o risco de que isso mude trocou de patamar. Ainda é irrelevante, mas deixou de ser impensável. Por isso o impacto positivo de uma medida à primeira vista austera como a redução da injeção de liquidez na economia.

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