RELATO: Fui queimada pelo meu marido no meio da avenida Paulista lotada
“Comecei minha transição hormonal aos 13 anos, quando me descobri menina. Vivia em Eldorado, no interior de São Paulo, e tive o total apoio de meus pais e irmãos. Mas, na rua, não foi bem assim: como mulher trans, sempre encontrei preconceito, olhares tortos, piadinhas e risadinhas que jogam para baixo. Em 2015, na capital, conheci um homem três anos mais novo e me apaixonei enlouquecidamente. Logo fomos morar juntos. Ele não tinha vergonha de andar comigo de mãos dadas, muito pelo contrário, fazia questão de me exibir e afirmar a nossa relação perante todos. No começo, tudo eram flores. Ele era muito romântico. Mas, com o passar do tempo, foi mostrando quem realmente era. Começou com agressão verbal, depois passou também para a psicológica até chegar à agressão física.
Eu achava que ele agia dessa forma por amor ou excesso de ciúmes, acreditava que iria mudar. Mas as agressões foram só aumentando. Ele dava tapas, chutes, socos, jogava pedaço de madeira, vassoura, rodo, faca e tudo que tivesse pela frente em cima de mim. Também não permitia que eu tivesse amigos nem contato com a minha família. Para falar com a minha mãe, eu ligava escondido de um orelhão próximo de casa — e sentia vergonha de contar o que se passava. Não sei como permiti que a relação chegasse a esse ponto. Parecia que estava cega.
Sem aguentar mais apanhar e sofrer, tomei coragem e resolvi me separar. Em 25 de maio de 2017, uma sexta-feira, esperei que ele dormisse e fugi de casa no meio da noite. Procurei uma amiga que vivia na Consolação, depois liguei para minha mãe e a avisei que estava indo para a casa dela, no interior. Já tinha perdido tudo por causa dele: a proximidade com a família, meu emprego, o contato com os amigos. Já não tinha vida própria.
Passei o sábado bem e, no domingo, minha amiga e eu resolvemos dar uma volta na avenida Paulista. Queria me despedir de São Paulo, pois na segunda iria embora para Eldorado. Nesse dia, 27 de maio de 2017, data impossível de esquecer, ele me abordou na rua. Já sabia onde eu estava, havia me seguido e apareceu do nada pedindo para voltar. Tomei um baita susto. Disse que a gente não dava mais certo e que seria melhor cada um seguir seu rumo. Ele pediu mil vezes para voltar, ajoelhou-se no chão, mas eu já estava totalmente decidida.
Furioso e inconformado, ele me agrediu e quis me levar à força com ele, me arrastando pelo cabelo. Resisti, gritei e pedi ajuda à minha amiga até que ele saiu de perto de mim. Mas voltou 15 minutos depois. Eram umas cinco da tarde quando ele me pegou pelas costas, jogou dois litros de etanol em mim e ateou fogo no meu corpo.
Fiquei pegando fogo por uns três minutos e, mesmo assim, ele ainda conseguiu me bater. Sentia aquele cheiro de carne queimando, um pesadelo. Quando as pessoas perceberam que meu corpo estava em chamas, começaram a se aproximar. Tentaram apagar o incêndio me colocando para rolar no chão, depois jogaram água. Ele rapidamente fugiu. Minha amiga chamou uma ambulância, mas o socorro demorou 40 minutos para aparecer.
Cheguei ao Hospital das Clínicas desacordada de tanta dor. Só fui acordar 15 dias depois, pois o médico havia me colocado em coma induzido para amenizar o sofrimento. Acordei ainda sem entender o que se passava. Estava toda enfaixada e fui lembrando, aos poucos, o que tinha acontecido.
Tive 45% do corpo queimado: braços, seios e colo, além de parte do rosto, do pescoço, do tórax e das costas. Fiquei na UTI por quatro meses lutando pela vida. Passei por várias cirurgias de enxerto, tive outros comas e complicações renais e pulmonares. Também perdi o movimento da mão esquerda. Mal reconhecia meu rosto no espelho — aliás, o evitava. Por causa das queimaduras nos braços, precisava de ajuda para tudo.
Depois de ter alta do hospital, continuei meu tratamento em casa. Uma série deles: psicológicos, de pele e também com fonoaudiólogo, por conta das queimaduras no pescoço. Foram nove meses de recuperação intensa, com dores ainda muito fortes.
Aprendi na marra que quem ama cuida, não maltrata, não xinga, não agride, não fere. Passei também por um processo de aceitação gigantesco, porque minha autoestima estava abaixo do pé.
Só depois de três anos quis correr atrás de justiça e prestar queixa. Não tinha tido mais notícias do meu ex, e ele precisava pagar pelo que fez. Descobri então que estava preso por outro delito. Mexia com umas coisas erradas e eu nem sabia, nunca soube. Procurei ajuda com uma promotora de justiça que me ouviu e abraçou meu caso. Prestei depoimento na delegacia e aguardo o laudo médico que prova minhas sequelas.
Até hoje fiz 30 cirurgias reparadoras e plásticas. E ainda tenho muitas outras para realizar, pois pele queimada é um tratamento árduo e contínuo. Sei que meu corpo não vai voltar ao normal, mas pode melhorar bastante.
Sigo disposta a ajudar outras mulheres que passam ou passaram por uma tentativa de feminicídio ou um relacionamento abusivo. Hoje estou bem psicologicamente, com a autoestima mais elevada. Aprendi a lidar com minhas cicatrizes: elas me provam, todos os dias, o quanto sou forte e resiliente. Não deixo a tristeza me contagiar, vivo sorrindo. Se antes já era vaidosa, agora estou ainda mais. Quero sempre estar bonita, maquiada, bem vestida, em cima do salto. E tudo isso para mim mesma.
Atualmente, sou ativista da causa das mulheres vítimas de violência e trabalho nas redes sociais as incentivando a detectar os machos violentos com que muitas ainda convivem em suas casas. Sou embaixadora de um aplicativo gratuito contra violência doméstica chamado Âmago. Lá, encaminhamos mulheres que vivem relacionamentos abusivos para uma rede de apoio. E ainda enviamos um botão de pânico associado ao celular para fazer pedidos de socorro. Quando a mulher se sentir em perigo, basta acionar o botão e, automaticamente, ele aciona os cinco contatos mais próximos da vítima. O aplicativo aciona também o GPS do celular.
Hoje me sinto uma pessoa melhor, renovada e de uma força incomparável. Quando uma mulher passa pela beira da morte e se levanta, como foi o meu caso, nada mais no mundo faz com que ela desista ou desanime na vida.”