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RELATO: Perdi minhas pernas e um dos meu braços por causa de uma pipa

Atenção: alguns detalhes da descrição do acidente podem ser considerados chocantes.

Mário Borges queria ser médico cirurgião ou jogador de futebol. Na infância e no início da adolescência, era adepto de esportes e praticava diversas atividades físicas, como jiu-jitsu e capoeira. Ele tinha 14 anos quando, em um sábado de junho de 2010, sua vida mudou completamente. Enquanto tentava pegar uma pipa, o jovem levou uma descarga elétrica que fez com que perdesse grande parte das pernas e o braço esquerdo.

“Durante a descarga elétrica, parecia que eu estava explodindo. Era como se todo o meu corpo estivesse sendo perfurado. Senti como se eu estivesse rachando e o choque estivesse detonando tudo”, relata o jovem, hoje com 24 anos, à BBC News Brasil.

Ele ficou internado em estado grave, passou por mais de 10 cirurgias e permaneceu no hospital por mais de dois meses até retornar para casa, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro.

O jovem se considera um sobrevivente. Quase uma década depois, ainda enfrenta diversas dificuldades. Para ir a grande parte dos locais, Mário usa uma cadeira de rodas. Ele tem próteses, que ganhou anos atrás, mas que não acompanharam o seu crescimento ao longo do tempo e hoje são consideradas ineficazes para ajudá-lo a se locomover.

“Esse acidente que aconteceu com o meu filho mudou completamente a nossa vida”, relata a cabeleireira Josilma Botelho, mãe de Mário. “Ele era um garoto que andava e tinha uma rotina comum. Foi muito triste vê-lo tendo que se arrastar ou dependendo dos outros para que pudesse se locomover.”

A história do jovem é também um alerta em relação aos cuidados com a pipa. Os incidentes relacionados ao objeto são mais comuns em períodos de férias escolares, segundo o capitão Marcos Palumbo, porta-voz do Corpo de Bombeiros de São Paulo. “A população precisa ter muito cuidado ao soltar pipas, principalmente em áreas urbanas”, diz Palumbo.

A descarga elétrica

Naquela tarde de sábado de 2010, Mário tinha saído para jogar futebol. Pouco antes das 17h, retornou para casa. Horas mais tarde, teria um encontro romântico com uma colega da escola. “Ele estava todo animado, porque iria sair com a menina que ele gostava”, lembra Josilma.

Enquanto não começava a se arrumar para o encontro, ele decidiu fazer uma de suas atividades preferidas: soltar pipa. “Desde que eu era pequeno, o meu pai me ensinou a soltar pipa. Eu gostava muito. Muitas vezes, ia para a escola e pensava: mais tarde vou soltar pipa”, relata o jovem.

O garoto tinha um acordo com os pais em relação às pipas: somente poderia soltá-las na laje de casa. “Não achávamos seguro que ele soltasse na rua. Muitas vezes, os amigos dele iam até a nossa casa para brincar”, diz a mãe de Mário.

Justamente na laje de casa, ele começou a se preparar para soltar pipa naquele fim de tarde de junho de 2010. Ele relata que cortou pedaços de sacola para fazer a “rabiola” e logo avistou uma pipa caindo em direção aos fios de eletricidade que ficavam nas proximidades sua casa.

“O vento estava baixo. A pipa caiu do céu, lentamente, e parou na ponta do fio”, narra o jovem. Ele conta que pegou um pequeno pedaço de pau, para tentar puxar o objeto, mas não conseguiu. “Acabei desistindo, mas logo vi algo brilhante atrás da geladeira que ficava na laje: era um trilho para cortina”, diz.

O rapaz usou o trilho de alumínio para tentar pegar a pipa que estava presa nos fios — segundo a mãe do jovem, o material havia sido retirado do quarto dele dias antes e guardado na parte traseira da geladeira da laje.

“Quando aproximei o trilho na pipa, ele encostou nos fios e fiquei travado. Fiquei preso ali. Não conseguia mais mexer meu corpo, só os meus olhos. O trilho começou a derreter e eu senti uma sensação como se todo o meu corpo estivesse explodindo. Foi horrível. Na hora, só pensava que eu fosse morrer, mas não queria morrer ali”, relata Mário.

Enquanto levava a descarga elétrica, ele conta que se recordou do passado, principalmente da infância. “Pensei, principalmente, nos meus pais. Também comecei a me arrepender de coisas que fiz e outras que não fiz”, relata.

© Arquivo pessoal Mário ao lado do pai, durante a infância: rapaz era uma criança agitada e apaixonada por atividades físicas

Ele revela que teve dificuldades para se soltar do trilho de alumínio. “Eu o segurava com o braço esquerdo. Em certo momento, usei o braço direito para tentar me soltar. Depois de muito esforço, consegui me desvencilhar do trilho. Não sei por quanto tempo levei a descarga elétrica, porém sei que foram poucos minutos, mas muito intensos. Quando soltei o braço, o trilho se soltou do fio e houve uma explosão”, conta o jovem.

Posteriormente, a concessionária de energia da região informou aos familiares de Mário que o jovem levou descarga elétrica de 13,8 mil volts.

A recuperação

Logo após se desvencilhar do trilho, Mário ouviu os vizinhos se aglomerando na rua e dizendo: ele está pegando fogo. “Fiquei alguns segundos em pé, mas não senti meu corpo, não senti nada. Estava paralisado mesmo. Depois caí no chão, fiquei alguns segundos com os olhos abertos e fechei os olhos”, conta.

Mário relata que teve uma parada cardíaca após a descarga elétrica. O pai do jovem, que é policial aposentado, usou técnicas de primeiros socorros e fez uma massagem cardíaca no filho.

A mãe do rapaz trabalhava no salão de cabeleireiro, no primeiro andar da casa, quando ouviu crianças da rua dizendo que o filho estava pegando fogo. “Eu saí correndo. Quando subi na laje, vi o meu filho desacordado e o meu marido o ajudando. O Mário estava todo queimado. Dava para ver os ossos das pernas dele, além de um buraco no peito esquerdo, ao lado do coração. Foi uma cena horrível”, descreve Josilma.

Uma equipe do Corpo de Bombeiros chegou à residência e Mário foi encaminhado para um hospital. “Fui colocado em um quarto. Naquele momento, senti muito frio, desespero e aumentou ainda mais o medo de morrer. Meus pais conversaram com os médicos e não paravam de chorar. Comecei a morder a língua para ficar acordado, porque tinha medo de dormir e morrer”, relata.

Ele ficou 11 dias na UTI. No período, os médicos tiveram de amputar o braço esquerdo e parte das pernas dele — a esquerda foi amputada do joelho para baixo, enquanto a direita foi pouco acima do joelho. “Os médicos disseram aos meus pais que havia duas alternativas: viver com as partes amputadas ou ir para o caixão com todos os membros. Não havia como salvar esses membros, porque eles haviam necrosado”, diz o jovem.

Quando teve os membros amputados, ele estava sedado. Posteriormente, ao despertar, foi informado sobre o fato. “O meu pai me disse que dali em diante eu era o Mário sem as pernas e sem um braço. Eu tentei não sofrer muito naquele momento, porque estava feliz por estar vivo.”

A recuperação do jovem foi mais rápida do que o esperado pelos médicos. Em pouco mais de dois meses, ele recebeu alta. Em casa, continuou o tratamento com fisioterapeutas e também psicólogos. “Foi muito difícil voltar para a minha rotina, porque tudo havia mudado. Eu dependia dos meus pais para as atividades mais simples, como ir ao banheiro ou comer”, diz.

“A recuperação do Mário foi uma fase muito difícil. Mesmo tendo alta, ele passou praticamente um ano indo direto ao hospital, para fazer cirurgias e outros procedimentos. O meu filho perdeu grande parte da juventude dele em cima de uma cama”, lamenta Josilma. Os pais dele se mudaram com o jovem de Campos dos Goytacazes para Araruama, também no Rio de Janeiro, onde o jovem fazia acompanhamento médico.

Ele ganhou uma cadeira de rodas no hospital em que ficou internado. Pouco depois, também ganhou próteses para as pernas e para o braço esquerdo. “As próteses me ajudaram a me desenvolver, mas são as mais básicas possíveis. Hoje, não consigo utilizá-las como antes. Por isso, sempre vou para os lugares na cadeira de rodas”, conta o jovem. Atualmente, consegue fazer sozinho atividades como almoçar e tomar banho. As dificuldades surgem quando é preciso sair de casa, pois precisa de apoio para andar na cadeira de rodas, que não é motorizada.

Em 2015, ele concluiu o ensino médio. Hoje sonha em cursar psicologia. “O acompanhamento psicológico foi muito importante durante a minha recuperação e, por isso, quero poder ajudar outras pessoas dessa forma também”, afirma. No futuro, ele planeja dar palestras para contar sobre como superou as perdas dos membros.

Cuidados com as pipas

Após a recuperação, Mário tentou soltar pipa outras vezes, mas não conseguiu, porque tem dificuldades de mobilidade com a mão direita. Apesar do acidente, ele diz que não desestimula as pessoas a brincarem com o objeto. “Mas é importante ter cuidado. Recomendo que as pessoas soltem em lugares que não tenham fios, como no campo, e evitem o uso do cerol. E se a pipa cair em um fio, deixa pra lá, não vale a pena se arriscar”, diz o jovem.

Segundo o capitão Marcos Palumbo, o principal problema relacionado a pipas é o uso do cerol. “Existem linhas industrializadas com cerol que são misturas de pó de ferro, alumínio e vidro. Muitos empinam essas pipas em estradas ou avenidas e isso é perigoso, principalmente para motociclistas e ciclistas, que podem ter ferimentos gravíssimos, que podem levar à morte”, pontua.

Além do cerol, o capitão relata que soltar pipas em áreas com muitas fiações e buscar pelo objeto em quintais desconhecidos também são situações arriscadas. “É preciso haver maior conscientização sobre as pipas. Nas escolas, as crianças e adolescentes precisam ser orientados. A gente não pode criminalizar a pipa, mas é preciso alertar, principalmente em relação ao uso do cerol. Também é importante que entendam que as pipas devem ser levantadas longe de fiações elétricas”, declara.

YouTuber e gamer

Uma das formas que Mário encontrou para encarar a vida após o acidente foram os jogos online. “Os games me ajudaram muito. Consegui voltar a jogar perfeitamente depois do acidente. Muitas pessoas não acreditam que consigo jogar apenas com um dedo da mão direita, pois não tenho mobilidade nos outros. Uso o joelho também, para controlar os personagens”, diz.

“Sempre gostei de jogos online, desde a infância. Os games foram muito importantes na minha recuperação, porque antes de voltar a jogá-los, passava os meus dias deitado, olhando para o teto ou vendo televisão”, acrescenta. 

Por meio dos jogos, decidiu virar youtuber. Há dois anos, ele criou o canal “Biônico Play”, no qual começou publicando apenas vídeos sobre games. Posteriormente, também passou a falar sobre a sua história e a sua rotina sem os membros. “Ganho pouco dinheiro com o YouTube. Ainda não consigo viver disso, mas penso que é importante contar a minha história para que as pessoas acreditem que nada é impossível”, afirma. Nos vídeos sobre si, ele compartilha momentos como diálogos com seus pais e treinos na academia.

O “biônico” que dá nome ao canal é em razão de próteses biônicas, que estão entre os maiores sonhos dele — que custam, em média, R$ 200 mil cada membro. “Quero conseguir próteses que realmente possam me ajudar, para que eu possa ter melhor locomoção. O problema é que elas são muito caras e não tenho condições para comprá-las”, conta o rapaz.

Após a descarga elétrica, atividades que podem parecer comuns para outras pessoas fazem parte dos desejos do jovem para o futuro: sair sozinho, passear e conhecer diferentes lugares do país e do mundo. “Quando eu conseguir novas próteses, que possam me trazer independência, um dos meus principais objetivos é poder viajar. Nunca viajei, porque atualmente não tenho mobilidade para isso.”

“Depois de tudo o que vivi, passei a dar mais valor à vida e aos pequenos detalhes dela. Minha visão da vida mudou completamente”, afirma.

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