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RELATO: Me joguei na frente de um carro para salvar a minha filha

“Quando eu nasci, em 1977, fui batizada de Elis em homenagem à grande intérprete da MPB. Além do nome acredito que herdei a personalidade forte da Elis Regina. Na escola conheci o Roberto, professor de ciências da sétima série, dez anos mais velho que eu. Nos apaixonamos e começamos a namorar, mesmo com alguns falatórios. Nos casamos sete anos depois, em 1998, e tivemos nosso primeiro filho, Lucas. Nossa menina, Isabela, nasceu em janeiro de 2002.

Quando tinha seis meses Isabela começou a ter sérios problemas de saúde. Meu bebê mal se desenvolvia, sempre estava muito quietinha, sofria horrores. Foram meses de muito medo e incertezas até vir o diagnóstico: um grave refluxo. O tratamento experimental era caro, ficamos na dureza, mas felizes por ajudar nossa filha a se tratar.

Um dia, em novembro de 2003, Isabela estava em pé na cadeira da nossa cozinha e deu um soluço que me estremeceu por dentro. Era o sinal de que a crise voltaria e a única coisa a ser feita era ‘abrir’ o peito dela para reconstruir seu sistema gastroesofágico. Parece que ainda vejo essa cena passar como um filme na minha cabeça. Entrei no banheiro e questionei a Deus por que isso acontecia com a minha filha. Por que ela sofria tanto? Propus um acordo a Ele: ‘vamos lá, meu caro, poupe a minha filha e dê a mim o seu fardo’. Pedi que mandasse para mim três vezes mais o que Isabela passava, eu não iria reclamar. Saí de lá convicta de que seria atendida.

Em um domingo ensolarado, dia 23 de novembro, eu pretendia dar uma volta de carro e buscar meu filho mais velho que voltava de um passeio com a escola. Minha filha estava com um ano e 10 meses. Nessa época, tínhamos dois carros. Antes de sair, fui guardar um dos carros na nossa garagem e encontrei minha mãe no caminho. Quando abri o portão da garagem a Isabela chorou pedindo colo. A coloquei sentadinha no banco de trás do carro e fui manobrá-lo. Dei ré e entrei na garagem de casa. Subi uma rampa que tinha lá e parei o carro na parte plana.

Ao ver minha mãe fazendo uma força danada para fechar o portão, desci do carro para ajudá-la. De repente, o carro veio descendo. Demorei alguns segundos até raciocinar: se eu estou aqui fora, quem está no volante? A Isabela estava dentro do carro.

Eu, no instinto materno, estiquei meus braços e achei que fosse conseguir segurar com minhas mãos o carro desgovernado em plena descida. Óbvio que não consegui. O carro jogou minha mãe longe e eu fiquei entre o veículo e o portão de casa. O automóvel arrancou o portão dos trilhos. As rodinhas do portão encontraram as minhas costas antes de eu ser engolida para baixo do carro. O portão de ferro me cortou tão fundo, que quase tive o meu braço esquerdo decepado.

O carro foi me arrastando pelo asfalto e fui escalpelada. Minhas unhas das mãos foram todas arrancadas, as peças iam cortando as pernas. Eu conseguia escutar meus ossos se quebrando. Vivi um filme de horror. Depois, ao bater no muro da casa da frente, o pneu do carro ainda passou lambendo o meu rosto. Só sabia que não estava morta porque escutava os gritos da minha mãe.

A rua estava cheia e me lembro de várias pessoas que eu nem conhecia correrem para erguer o carro e me tirar de lá. Eu estava toda machucada. A única força que eu tive naquele momento foi para perguntar pela Isabela. Minha irmã pegou minha filha de dentro do carro e a levou bem pertinho de mim. Pude ver seu rostinho e percebi que ela estava bem, fiquei um pouco mais tranquila.

Nesse momento senti algo quente nas minhas costas, era sangue escorrendo. Alguém me cobriu com uma manta do sofá da casa da minha mãe. Uma vizinha se sentou na calçada e ficou tentando me tranquilizar, dizendo que tudo ficaria bem. Desesperado, Roberto ligava para o corpo de bombeiros. Minutos depois ouvi as sirenes do carro de polícia que interditou a rua para desviar o trânsito. Nossa rua ficou lotada de curiosos querendo saber o que tinha acontecido comigo.

Quando meu marido se aproximou de mim só lhe disse para cuidar dos nossos filhos. Pedi para Roberto viver a vida dele. Sentia que ia demorar a sair dessa, que estava toda quebrada. Ele pedia para eu não repetir isso, dizia que ficaríamos bem velhinhos juntos. Eu tinha apenas 26 anos, era muito jovem e cheia de sonhos pela frente.

No hospital, levei mais de 500 pontos. Soube que tive uma fratura em três vértebras. Fiquei internada por sete meses. Já não tinha mais pele, estava com braço e perna quebrados, fui dilacerada pelas peças do carro. Estava irreconhecível. Virei um monstro! Nem quis que os meus filhos fossem me visitar para não ficarem traumatizados. Usei um colar cervical para sustentar minha cabeça que encheu o meu rosto de escaras e feridas. Entre muitas cirurgias paliativas, erros médicos que eu também tive, veio ainda a tetraplegia.

Passei quatro anos em cima de uma cama sem poder andar nem me mexer da cabeça para baixo. Foram 15 cirurgias e sete anos na cama. Mal pude acompanhar os meus filhos crescerem. E eu sentia muita dor. Com a forte pancada no abdômen, perdi as minhas funções intestinais e o meu aparelho reprodutor praticamente ‘morreu. Meu marido ia todas as manhãs me tirar da cama, eu descia as escadas da casa que morava arrastando a bunda para chegar até a cozinha e ainda conseguia fazer o almoço, fazia bolo de cenoura, punha roupa para lavar na máquina. Não queria nem podia me entregar.

Nunca fui abandonada pela minha família. Meu marido me levava ao parque para ver meus filhos andarem de bicicleta e de patins. Mesmo estando imobilizada, careca, feia e cheia de feridas, Roberto, meu grande amor, nunca me deixou sozinha. Ele cuidava de mim como ninguém, trabalhava igual a um doido para segurar as contas de casa e cuidava das nossas crianças pequenas.

Eu vivia à base de morfina. Meu médico, Dr. José Olympio Catão Bastos, decidiu me operar para tirar a dor alucinante que eu sentia. Ele afirmou, no entanto, que não tinha esperança de eu andar ou falar mais. Fiquei desesperada.

No dia 4 de agosto de 2010 eu estava pronta para ir ao centro cirúrgico e vi Roberto cabisbaixo. Entre suas pernas, em pé, sempre lindinha estava minha Isa. Ela era uma menininha linda, saudável e esperta. Na cirurgia o médico retirou um osso do meu quadril para reconstruir as vértebras esfareladas. Depois fixou com uma placa de metal atrás e colocou cinco parafusos na minha garganta. Depois de mais de oito horas de cirurgia, acordei na UTI e confesso que cheguei a procurar Deus, já que não estava sentindo dor. Me perguntava se tinha morrido.

Quando vi meus dois sobrinhos amados entrar na UTI, assim que acordei, perguntei pelos meus óculos. Para quem não iria mais falar, já estava até brigando querendo meus óculos! Resolvi dar uma volta pelo corredor do hospital, segurando os dois drenos – da perna e do pescoço. Dr. José Olympio havia sido chamado pelo auxiliar e foi correndo pensando que algo tinha dado errado. O cumprimentei. Lá estava eu andando e falando. Ele mal acreditou. Esse homem chorou ao me ver de pé e toda falante. Ele foi o meu grande anjo da guarda nessa vida e sou eternamente grata.

Fiquei de pé, em todos os sentidos que alguém pode se reerguer. Nunca mais senti dor. Antes da cirurgia, em um dos momentos de maior aflição e dor, me tranquei no banheiro de casa e agradeci a Deus por cumprir o nosso acordo. Jamais reclamei ou me lamentei por nada que aconteceu comigo, sabia que nada tinha sido por acaso. Novamente bati um papo com Deus e pedi uma chance de voltar a andar. Prometi não desperdiçarum só dia da minha vida. E eis que recuperei todos os meus movimentos e também a minha vida.

Não me arrependo de nada que fiz e faria outras mil vezes novamente para proteger a minha filha. A Elis que viveu até o dia do acidente não existe mais. A deixei debaixo daquele carro. A Elis que nasceu naquele dia, não sei se é melhor ou pior, mas é uma pessoa diferente, que valoriza muito mais todas as coisas simples da vida. Vivo intensamente os meus dias. Me tornei professora e amo muito os meus alunos. Faço doces e bolos para vender, faço parte também de uma ONG que protege animais carentes, faço marmitas para doar a moradores de rua e sigo minha vida sempre agradecendo a oportunidade de renascer.

Minha Isa nunca mais teve problema de saúde. Ela se tornou uma pessoa maravilhosa, que me ensina todos os dias a amar. É realmente uma honra ser mãe e para salvá-la faria tudo de novo outras mil vezes sem nem pensar.

Hoje estou com 43 anos e vivo plenamente bem, sem dor nem grandes sequelas. Sigo casada com meu amado Roberto, meu companheiro de vida e meu grande amor. É lindo poder estar bem e assistir nossos filhos voarem e conquistarem seus sonhos. E, pelo visto, Roberto e eu ficaremos juntos até bem velhinhos. Essa foi a promessa de vida que fizemos um ao outro e vamos cumprir.”

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